Menos busca pelo hype. Mais presença.
Ninguém mais lê, vê ou escuta. Apenas consome. Pensamentos e coisas que li e assisti. No meu tempo, do meu jeito.
1.
Ainda não sei se valeu a pena voltar com essa parada de newsletter. Só queria fazer disso um exercício de escrita, de organizar ideias e de compartilhar coisas que achei interessantes. Mas, pra ser exercício, precisa ser rotina — e arrumar espaço na minha é pique missão impossível.
Por pouco as coisas não ficaram mais complicadas. O trabalho presencial duas vezes na semana (que no meu caso é uma, graças a um chefe entusiasta de cursos sobre fatores humanos), só não virou três porque os deuses do home office (em forma de sindicato) interviram.
Seguimos aqui, administrando o caos delicioso que uma criança de três e outra de um aninho são capazes de proporcionar. Tudo enquanto temos que lidar com planilhas, e-mails e reuniões (que, com sorte, serão de câmera fechada) com o objetivo de entregar mais perfurações e completações de poços de petróleo (mas a transição energética vem aí, confia).
2.
Se tá difícil parar para escrever e colocar os pensamentos em ordem, muitas vezes me falta empolgação pra compartilhar o que tenho consumido, pois parece que tudo já foi esgotado de comentários, resenhas e #POVs da vida.
Dia desses vi um comentário sobre como o hype em torno das coisas se dissipa cada vez mais rápido. O comentário se referia a “Adolescência” — a aclamada série da Netflix — ter saído do debate em questão de dias. Nem acho que seja o caso, ainda vejo a série sendo assunto em muita roda de conversa, inclusive essa notícia diz muito sobre a sua força e o poder em geral do audiovisual.
Ainda assim, o comentário me fez pensar sobre esses tempos em que a gente só pula de hype em hype, de treta em treta. E de como a dinâmica das redes faz a gente postar muito e refletir pouco. Somos tentados a falar sobre tudo o tempo todo, só pra se manter relevante ou pra pagar de antenado — e falo por mim mesmo, já me vi caindo nessa armadilha algumas vezes.
O mais importante não é consumir o conteúdo — a série, o livro, a música — mas falar sobre o conteúdo que acabamos de consumir.
3.
O Rodrigovk escreveu sobre a expressão “consumir conteúdo” ser muito da insossa. “A gente não “consome comida”, a gente come, saboreia, se delicia, se serve, digere. Olha a quantidade de metáforas!”
Livros, filmes, álbuns, como hoje em dia tudo virou conteúdo, parece que ninguém mais lê, vê e escuta, apenas consome.
4.
Todo hobby é uma forma de lazer, mas nem todo lazer é um hobby. Lazer é qualquer coisa que proporcione prazer, descanso ou diversão. Hobby, por outro lado, é uma atividade de lazer recorrente e que geralmente envolve algum nível de dedicação ou até desenvolvimento de alguma habilidade. É o que fazemos pelo prazer de criar ou imergir em algo novo.
Uma das minhas principais fontes de lazer é sentar pra ler um livro ou assistir uma série/filme na tv. E talvez um dos meus principais hobbies não seja apenas ler e ver, mas também catalogar, classificar e comentar o que li e assisti. O risco de estragar esse hobby transformando-o em trabalho é inexistente (não que eu não topasse ganhar dinheiro com isso, só me falta habilidade mesmo) mas o risco de transformá-lo num fardo é cada vez mais presente.
Com uma lista infinita de livros pra ler e filmes pra assistir, já me peguei numa posição de parar pra ler ou assistir algo nem tanto pelo lazer ou pelo hobby, mas pela sensação do “menos um” nessa lista - ou do “mais um” na lista de conteúdos para catalogar.
5.
"A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. (…) Uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na qual a experiência é impossível."
— Jorge Larrosa Bondía, em Notas sobre a experiência e o saber de experiência
6.
Tenho refletido sobre essa sensação de esmagamento, essa pressão para estar por dentro da série do momento ou do livro que todos estão lendo — sintoma dessa era do conteúdo e da busca pelo hype que estamos vivendo.
Tenho ficado atento a isso e pensado em hobbies mais “ativos”. No sentido de “fazer coisas” e de ter mais experiências no mundo “lá fora” em vez do acúmulo de consumo de conteúdo feito por terceiros.
Enquanto isso (e agora enxergando com mais clareza depois de colocar esses pensamentos no “papel”), é legal ter voltado a mexer com isso aqui. Onde sempre volto, não apenas para refletir com calma, mas para escrever — o que não deixa de ser algo pelo menos um pouco mais ativo — sobre o que me chama atenção. Onde degusto um pouco mais as coisas que vi por aí. Em vez de só devorar o que tá em alta no momento e cuspir logo uma opinião.
Não importa se a trend já passou, se todo mundo já comentou. Aqui é onde quero compartilhar no meu tempo, do meu jeito. Menos por hype e mais por presença.
📺 Coisas que vi
Se você não se deixou levar pelo hype (ou é do contra, tipo eu, que muitas vezes fica incomodado com ele), ainda vale dar uma chance para Adolescência — especialmente para quem é pai ou mãe de adolescente ou trabalha com essa galera. Sem querer entrar no mérito se a série é boa ou não (pra mim é boa pra caramba), achei importante os assuntos abordados e as discussões que foram geradas. Apesar de não ser baseada em uma história real, foi segundo os próprios criadores, inspirada em episódios relacionados à “manosfera”, aos “red pills” e questões como bullying, o universo incel e a parentalidade. O hype foi merecido e bom para popularizar a discussão sobre temas ainda pouco compreendidos por tanta gente. Ainda tem as atuações impecáveis, a tensão, aquele plano sequência…me impactou pra valer.
O formato de liberar um episódio por semana cai muito bem para algumas séries (em geral, prefiro assim do que tudo de uma vez). Acompanhar os comentários, as teorias e os memes durante a semana seguinte a cada capítulo é sempre um capítulo à parte e foi assim com as novas temporadas de White Lotus e Ruptura.
A terceira temporada de White Lotus foi a que menos gostei — mas só porque as outras duas colocaram a barra lá no alto. Essa parece que demorou a engrenar, mas manteve o padrão: crítica, debochada, com texto afiado… um barato de assistir. Descobrir quem vai matar e quem vai morrer acaba ficando em segundo plano. Se você ainda não se rendeu, vale o confere.
Já Ruptura é um espetáculo. Lembro que o final da primeira temporada me decepcionou um pouco por deixar muita coisa em aberto. Nessa segunda, os arcos dos protagonistas fecharam legal. Achei que ficou redondinha. Para mim, não precisava de mais nada. Se a série acabasse assim, eu estaria satisfeito demais.“A série dirigida por Ben Stiller, com personagens lapidados em mármore e um texto que eu gostaria de ler em livro, já está lá no panteão das melhores já feitas”. As aspas são da Vera Magalhães, que me representou nessa resenha aqui (podia fazer isso mais vezes, Vera).
Uma que ficou longe do hype e quase passou desapercebida pelo meu radar foi Não Diga Nada. Me chamou atenção por ser uma adaptação de um livro do Patrick Radden Keefe. Lembro de ter ficado impactado com Dopesick, que é uma adaptação de um outro livro dele — o “Império da Dor”.
Meus vagos conhecimentos sobre as décadas de conflitos na Irlanda do Norte vinham de lembranças do Jornal Nacional no final dos anos 90 e suas notícias carregadas de violência e pavor envolvendo o IRA (Exército Republicano Irlandês). Eu era novo demais para entender as nuances daquela violência distante, com bombardeios de um grupo paramilitar de um lado e repressão militar do outro. A complexidade política — e principalmente humana — dessa história só se revelou para mim ao assistir essa série. Vi atento o desenrolar do caminho sem volta que uma sociedade pode trilhar ao abraçar o sectarismo, o extremismo político e o fundamentalismo religioso.
Desenrolada em ritmo de thriller, a série não pega leve com nenhum dos lados e cresce em drama, angústia e tensão a cada capítulo. Para quem não conhece o período conhecido como “The Troubles” na Irlanda do Norte, é tão elucidativa quanto emocionante — uma mistura de true crime com aula de história. Recomendo para qualquer pessoa interessada em compreender o custo humano de um conflito político. Tem no Disney+.
📚Coisas que li
O Fim de Eddy - Édouard Louis
Não tem muito tempo, parece que todo mundo na minha bolha das redes tava lendo o Édouard Louis. Salvei todas as indicações e resolvi começar pelo livro de estreia dele. “O Fim de Eddy” é um convite brutal pra ver o mundo pelos olhos do outro, numa França que a gente não vê nas fotos, onde violência e preconceito são o pão de cada dia. Louis escreve como um sobrevivente, já que como ele mesmo diz, "a autobiografia é a arte dos dominados". Abre nossa cabeça pra realidades que a gente só acha que consegue imaginar como é. Vou seguir lendo mais coisas dele.
Literatura Infantil - Alejandro Zambra
Estou lendo “O Poeta Chileno” e apaixonado. Pelo livro e cada vez mais pelo autor. Meu primeiro contato com o Alejandro Zambra foi através de “Literatura Infantil”, que é uma delícia de leitura. Em forma de anotações de diário e contos bem elaborados, é um livro que discute a experiência de se tornar pai, através de reflexões sobre família, cultura, maturidade, leitura e futebol (to falando, é uma delícia). O Zambra escreve como se fosse pro filho dele ler quando crescer e sei lá, pode ser por eu ser pai recente, é de emocionar pra valer. Que livro bonito. Vou voltar aqui pra falar de “O Poeta Chileno”, que fala meio que sobre as mesmas coisas, mas em forma de romance. Coisa linda.
Detalhe Menor - Adania Shibli
Esse é um livro pequeno mas marcante, que mostra como palestinos vêm sendo trucidados há décadas. É sobre a história de uma palestina que busca desvendar os detalhes de um caso ocorrido no deserto do Neguev um ano após o Nakba — episódio que expulsou mais de 700 mil palestinos de suas terras. Na ocasião, soldados israelenses dizimaram um grupo de beduínos, exceto uma adolescente, que é capturada e violentada. O livro é dividido em duas partes. A primeira, se passa no verão de 1949, narra a captura dessa jovem sob o ponto de vista de um sargento israelense A segunda, mostra o ponto de vista de uma mulher palestina que descobre o crime cometido precisamente 25 anos antes, no dia do seu aniversário, um detalhe menor que a faz partir em busca de respostas. Achei a primeira parte inquietante mas repetitiva. Enquanto a segunda é uma road trip cheia de tensão que mostra as dificuldades de viajar por um país que parece querer apagar toda sua existência.
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Obrigado por chegar até aqui. Por hoje é isso, nos vemos na próxima (sem pressa).
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👨💻Textos e curadoria por Edgar Oliveira.
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Primeiramente, é claro, é preciso escrever. Em seguida, é preciso continuar escrevendo. Inclusive quando não interessa a ninguém. Inclusive quando temos a impressão de que nunca interessará a ninguém. Inclusive quando os manuscritos se acumulam nas gavetas e nós os esquecemos, mesmo continuando a escrever outros.
"ÀGOTA KRISTÓF"
Eu sou uma anti hype. Acho que por ser uma hater profunda de spoilers.
Acho tb que o hábito de escrever tem mesmo, muito mais de presença, em antítese ao consumo. Inclusive, como professora, estimulo a escrita manual. Além de permitir o pensamento em outro tempo (mais cuidadoso sem o botão de delete) é intercessão com estímulos físicos/manuais, que são sempre exercícios interessantes. E pedagógicos.
Totalmente fora do hype, vc assistiu 13 reasons why? Acho que até hj não digeri a série. Se sim, não sentiu adolescência um pouco na mesma pegada? Do choque ao conteúdo?
Obg por dividir por aqui tb os pensamentos mais longos. Vc segue sendo meu influencer preferido ;)