O potencial do fazer nada. CP#57
Ser ou não ser. Agir ou não agir. Os dilemas da ação e da inércia.
Nesta edição:
I. Fome ou vontade de comer?
II. O NOMO no lugar do FOMO.
III. O potencial do "fazer nada".
VI. Links.
V. Livros.
Hoje começo dando boas vindas a todo mundo que chegou por aqui desde a última edição. A grande maioria, creio eu, chegou pela indicação do Luciano Braga (obrigado mais uma vez Luciano <3).
Que na sua edição de número #56, onde falava sobre a avalanche de novos assinantes que recebia, mencionou a edição #56 da Conectando Pontos, que agora abro falando da (ainda que bem mais modesta), avalanche de novos assinantes. E o que isso quer dizer? Nada.
Mas por falar no nada, a edição de hoje tem a ver com ele.
I. Fome ou vontade de comer?
“Quatro minutos é muito tempo pra esperar”, disse um amigo enquanto cancelava o Uber. Um outro amigo, dia desses, contou que usa os cinco minutos de trajeto (de Uber) entre a casa e o trabalho para ler notícias salvas na noite anterior. Contou que é um tempo precioso, onde aproveita pra ler de dois a três artigos antes de se afundar nas demandas do trabalho.
Para mim, lavar louça já virou sinônimo de ouvir podcast. É uma forma de aproveitar esse tempo “morto” para consumir um conteúdo “pendente”. A mesma lógica usada pelo meu amigo dos “três artigos em cinco minutos”.
Quando foi que viramos reféns dessa matemática da atenção? Quando passamos a tentar preencher todo tempo “morto” com alguma coisa produtiva? Até o lazer tem que ser produtivo, tem que nos ensinar algo. Nos fazer evoluir.
Não existe mais esse tempo para o ócio e o lazer. Na real, o ócio foi convertido em lazer e o lazer convertido em consumo. Perdemos a noção dos momentos destinados ao desfrute do tédio.
O Adnilson, da Mini Mundos, me escreveu depois da edição passada, pra contar como estava com dificuldades em achar esses momentos de tédio na rotina. Momentos tão importantes para dar espaço a sua reflexão e criatividade. Trago pra cá um trecho de seu e-mail que me fisgou demais e que me levou a escrever a edição de hoje:
“Em um mundo com redes sociais, podcasts, vídeos, música e newsletters, é muito fácil passar um dia inteiro sem enfrentar o bom e velho tédio. Só você em silêncio andando devagar pela casa, olhando pela janela e pensando se isso é fome ou vontade de comer.”
Difícil saber o que é, quando a gente não se dá nem o tempo de fazer essa pergunta.
Respondi que isso era algo que também me afetava. E eu já até havia esquecido o quanto. Resgatei a para lembrar da importância de “viver de forma menos desesperada e mais integrado a natureza”, e lembrar que dilemas como o excesso de conteúdo são mais antigos do que pensamos.
Mas com a atenção como a moeda corrente dos nossos tempos, esses dilemas se tornaram mais dramáticos.
II. O NOMO no lugar do FOMO
O que a economia da atenção tem a ver com essa “cultura da agitação” (a melhor tradução que achei para a “hustle culture”) e esse movimento por otimização e produtividade?
É que essa economia nos leva a uma versão mais extrema da ideia de que tempo é dinheiro. Não é que algum tempo é dinheiro, é que todo tempo é dinheiro. O tempo que você usa para dormir? Pode ser dinheiro.
Claro que nosso tempo é valioso, mas seu valor pode ser convertido em formas não monetárias, como a ociosidade, que abre espaço para criatividade, para conexão com nós mesmos, para a experiência de enxergar beleza num simples passar de tempo sentado na varanda e para questionamentos do tipo “isso é fome ou vontade de comer?”.
E também não é o caso de demonizar a produtividade. Todos temos coisas pra realizar, objetivos a atingir e ser produtivo é importante. A questão é quando a produtividade leva esse conceito de “tempo é dinheiro” ao extremo. E o quanto de estresse e ansiedade que gera em nós por sentirmos que nunca fazemos o suficiente. ().
Hoje, mesmo se você decidir: “Não vou fazer nada”, você acaba sentindo o custo disso. O “fazer nada” deixou de existir. Ou virou um meio de se alcançar a almejada produtividade.
Foi nesse contexto que, como alguém que vive ansioso por achar que não faz o suficiente, o livro “How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy”, chamou minha atenção.
Num mundo frenético obcecado por entregas e resultados, a artista, tecnóloga, escritora cultural e observadora de pássaros, Jenny Odell, argumenta não pela passividade, ignorância intencional ou preguiça, mas pelo potencial que criamos recusando esse sistema obcecado pela produtividade e redirecionando nossa atenção aos modos ativos de escuta e contemplação.
“Quando a superestimulação se tornou um fato da vida, sugiro que reimaginemos o #FOMO (medo de “ficar por fora”) como #NOMO, a necessidade de ficar por fora.”
Apesar do “How To” do título, o livro é tudo menos um guia prático. Se apresenta mais como um manifesto político contra esse sistema, em que ela oferece maneiras de se resistir à economia da atenção, tomando o cuidado de evitar respostas fáceis como o detox digital ou a fuga completa das redes sociais.
Odell escreve sobre a dificuldade para encontrar um tempo de inatividade e como ela descobriu que para fazer algo significativo, muitas vezes se exige que você não faça nada primeiro.
Mas então, como é esse fazer nada proposto pela Jenny Odell?
III. O potencial do "fazer nada"
Em 2008, empregados de um escritório da Deloitte ficaram perturbados com o comportamento de uma nova estagiária. No meio do movimentado ambiente de trabalho, ela parecia fazer coisa nenhuma exceto sentar numa mesa vazia e encarar o nada.
Sempre que alguém perguntava o que estava fazendo, ela respondia que estava fazendo o “trabalho de pensar” ou “trabalhando na (sua) tese”. Seu comportamento gerou ainda mais estranheza quando ela passou um dia subindo e descendo os elevadores repetidamente.
Quando um colega perguntou se ela estava “fazendo o trabalho de pensar de novo”, ela respondeu: “Me ajuda a ver as coisas com uma perspectiva diferente”. Os funcionários ficaram inquietos. E-mails urgentes foram enviados por todo escritório.
Acontece que a equipe involuntariamente participava de uma peça performática chamada “The Trainee”. A funcionária silenciosa era Pilvi Takala, uma artista finlandesa conhecida por vídeos em que silenciosamente ameaça as normas sociais com ações simples.
A noção de não trabalhar enquanto está no ambiente trabalho não é inerentemente incomum. As pessoas geralmente olham as redes sociais ou procuram outras distrações durante o período.
Foi a imagem de total inatividade que irritou os colegas de Takala. “Parecer como se você não estivesse fazendo nada é visto como uma ameaça ao funcionamento geral da empresa, criando uma sensação de desconhecido”, escreveram eles, acrescentando solenemente: “O potêncial do fazer nada é tudo”.
À medida, porém, que cada vez mais igualamos o valor humano à produtividade, o que significa esse fazer nada?
O objetivo de não fazer nada, como Odell define, não é voltar ao trabalho revigorado e pronto para ser mais produtivo, mas sim questionar o que atualmente percebemos como produtivo, assim como nossa aceitação inconsciente a fenômenos culturais e econômicos como a ideia de que “todos devemos ser empreendedores” ou o culto a “the hustle economy”.
“Meu argumento é obviamente anticapitalista, especialmente no que diz respeito às tecnologias que encorajam uma percepção capitalista de tempo, lugar, do eu e da comunidade. É também ambiental e histórico: proponho que redirecionar e aprofundar a atenção ao lugar provavelmente levará à consciência de sua participação na história e em uma comunidade mais do que humana.”
“De uma perspectiva social ou ecológica, o objetivo final de “não fazer nada” é arrancar nosso foco da economia da atenção e replantá-lo na esfera pública física.”
A Jenny apresenta uma série de abordagens, algumas que são um contraponto interessante a muito do que já abordei por aqui. Ela, por exemplo, escreve que “acho as coisas existentes mais interessantes do que qualquer coisa que eu pudesse fazer”. A partir desta posição, convida os leitores a considerar a possibilidade de que você pode obter potencialmente muito mais ao observar o que já existe em vez de adicionar mais coisas ao mundo.
Uma longa e diversa lista de referências históricas permeia todo livro, como uma seção interessante sobre Diógenes — o filósofo grego que teria vivido em um barril e era um grande “rebelde” na sua época. A abordagem dos cínicos originais e da filosofia cínica de examinar cuidadosamente a vida e vivê-la em seus próprios termos, em vez de dedicar toda a atenção à tagarelice da mídia social é um tema bastante explorado no livro.
Como já mencionei, apesar do título, o livro não apresenta respostas fáceis, funciona muito menos como um guia prático do que trata de coisas mais abstratas. E mais do que uma resenha sobre o livro, o ponto aqui é chamar atenção pra esses contrapontos. Pra necessidade de redescobrirmos o potencial do fazer nada. Do tédio. Da recusa em entregar nossa atenção e nossa ação sem qualquer reflexão.
Foi com essa intenção que, na curadoria da edição passada, compartilhei esse episódio do Tecnocracia como de utilidade pública.
Reforço a recomendação para que escutem, esse que sim, é um verdadeiro “manual prático para retomar sua atenção do calabouço das redes sociais”.
Já quem prefere uma discussão mais ampla sobre a vida moderna e o valor de prestar atenção sustentada às coisas (tanto o valor inerente quanto o valor em termos de alcançar qualquer progresso político significativo), sugiro o livro da Jenny, que reúne, além de suas experiências como observadora de pássaros, discussões sobre arte, ecologia, sociologia e ciência de maneiras reflexivas e até surpreendentes.
É um compilado de aspectos, que juntos, sugerem um potencial revolucionário de retomada da nossa atenção.
Adoraria ouvir o que vocês pensam.
🔗Conecta Links
◾ Em "Pode cultivar o ócio sim", o UOL TAB separa mais algumas dicas práticas (outras nem tanto) de como internalizar o ócio como um hábito. Apesar da armadilha logo no subtítulo, “Por mais que pareça contraditório, esse tempo para fazer nada te torna mais produtivo e saudável", o material traz dados importantes sobre a consequência de nossa recusa em parar e informações interessantes de incentivo a prática do nada.
◾ A reportagem da Gama sobre como descansar mostra que até isso tem que saber fazer direito. A médica e pesquisadora Saundra Dalton-Smith, defende que há sete tipos diferentes de descanso (físico, mental, espiritual, emocional, sensorial, social e criativo), dentre os quais o sono representa apenas uma pequena parcela. "O que as pessoas tendem a fazer errado é achar que o descanso só acontece quando param de trabalhar ou ficam sem fazer nada. Então elas não percebem que descansar tem a ver com restaurar as energias em áreas que ficaram esgotadas, o que geralmente significa que você deve fazer algo para sanar uma ferida" Até o fazer nada, às vezes, não é descanso.
◾ "Costumamos falar que somos pobres em tempo, mas isso é porque o entretenimento contemporâneo devora muito dele", escreve a 1843 Magazine em "História sem fim: por que os programas de TV de hoje continuam indefinidamente?" , que cita O Irlandês, Breaking Bad e Game of Thrones como exemplos de séries e filmes atuais que parecem intermináveis. "Em vez de imersão, tenho andado vagando; em vez de entretenimento, recebi auto-indulgência."
◾ "Revenge bedtime procrastination" (algo como procrastinar o tempo de dormir por vingança), é o nome dado a atitude de jovens chineses que, com suas insanas jornadas de trabalho 996, preferem dormir menos para, assim, passar algumas horas na internet ou assistindo a alguma série. No Twitter, uma psicóloga escreveu: "é um fenômeno no qual as pessoas que não têm muito controle sobre sua vida diurna se recusam a dormir cedo para recuperar um pouco de sensação de liberdade durante a madrugada." Nem é preciso ir na China pra perceber que, por não conseguir diminuir as horas de trabalho, muitos preferem sacrificar o sono para poder ter um pouco de tempo pra si próprio.
◾ Na ESPN, uma análise do "terrorismo digital" no mundo do futebol. "Temos que reconhecer o estrago que ele faz"
◾ "Por uma internet mais legal" poderia ser o título da mas é uma reportagem detalhada sobre nosso papel na internet, nossa relação com ela e sobre o desafio de transformar esse ambiente digital num lugar mais saudável, gostoso e criativo.
◾ Com o fim do ano é chegada a época das listas e das retrospectivas (a da CP chega na próxima e última edição do ano). De acordo com o New York Times, esse foram os melhores livros de 2020. E também no NYT, os melhores filmes do ano.
◾ A Associated Press apresentou uma retrospectiva em fotos capturadas por seus fotógrafos, que mostra um mundo assolado por todo tipo de catástrofe –desastres naturais e não naturais, conflitos violentos e não violentos.
◾ E pra não deixar o clima pesar, tem essa lista da Giphy, com os gifs mais vistos do ano. (SPOILER: comparada aos gifs que vejo pipocarem no meu mundo twitter, é uma lista bem fraca). E por falar em Twitter, a plataforma também apresentou seu balanço com os temas, hashtags e tweets de mais destaques na rede neste ano.
◾ Na Vice, uma lista detalhada de tudo que rolou em 2020, e que provavelmente você já esqueceu. O Google também soltou seu tradicional vídeo de retrospectiva com as respostas que o mundo mais buscou no site e, de fato, assusta o quanto de coisa nem lembrava que havia ocorrido esse ano. Mas que também dá uma sensação de alívio e esperança.
📚Conecta Livros
Atenção, de Alex Castro.
Editora Bicicleta Amarela. 2019. 239 páginas.
Se How to Do Nothing sugere uma série de aspectos, que juntos, possuem um potencial revolucionário de retomada da nossa atenção e funciona como um manifesto político, o mesmo se pode dizer de "Atenção". O foco aqui, no entanto, é na atenção ao outro. Ao próximo. "Sem atenção, não há cuidado. Nenhum ato pode ser mais político e mais transformador do que enxergarmos e cuidarmos uns dos outros". É um livro curto, direto, precioso e como chama o próprio autor, de outroajuda. Longe de ser fofo, namastê ou de qualquer outro cacoete coach, é de fato político e transformador.
Bartleby, o escrevente, de Herman Melville
Editora Autêntica. 2018. 145 páginas.
Li essa edição caprichada já faz alguns anos. É mais um clássico do Herman Melville (de um tal Moby Dick), que nos apresenta um personagem enigmático e sua famosa afirmação (uma das mais célebres da literatura): "Preferiria não fazer". É o que Bartleby responde sempre que seu chefe pede alguma coisa. Um livro curto, quase um conto, muito interessante e intrigante, com o personagem que, de todos citados pela Jenny Odell, de Diógenes a Thoreau, passando por Epicuro e Platão, quem fornece a melhor resposta sobre a recusa de participar do sistema como demandado. Deu vontade de reler. .
Daqui há exatos 15 dias, data da próxima edição, é o Natal. Ainda não sei se vou antecipar ou deixar pra depois. Não sendo o primeiro caso, já desejo a você um Feliz Natal. Que mesmo sem motivos e possibilidades de grandes confraternizações o espírito natalino seja ativado.
Obrigado por seguir conectado. Até a próxima.
~ Edgar Oliveira
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